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Nos Lugares Sagrados com o Guru de Bengal

"Rasgue minha pele, beba meu sangue, coma minha carne, mastigue minha medula, lamba meu cérebro, encerre meu bindu."

Eu estava sentada ao lado de Baba-ji, ouvindo-o em meio a uma nuvem de fumaça sagrada dentro do quarto de hotel onde eu estava hospedada com meu parceiro e outros dois amigos. Escutávamos Baba-ji em total entrega, tentando registrar suas palavras eloquentes, buscando integrar seus ensinamentos e alcançar o estado de ser que ele emanava.

Baba-ji sempre estava em um estado de generosidade inabalável, oferecendo o fogo de sua intensa devoção ao “grande amado”, a quem ele chamava de "Ma"—a Grande Mãe, a deusa, a criadora, a amante, a geradora de vida presente em tudo e em todos. Ele tornava seu amor tão palpável através de sua própria presença—um amor que ele encarnava por completo. Sempre rindo e brincando, mas, na maioria das vezes, zombando de nós, ele provocava nossa seriedade e nossas tentativas de compreender seus ensinamentos por meio da mente e de anotações minuciosas. Ele ria: está sentindo? Você é o que sente? Ele nos perguntava diretamente: você está sentindo amor? Pode sentir o fogo do Sahaj? Pode se render à paixão do guru?




A eloquência de Baba-ji seduzia nossas mentes enquanto nos convidava a nos render à pura sabedoria e à imediaticidade da sensação. Ele nos incentivava a ultrapassar os limites do intelecto e acessar, por meio das portas físicas dos sentidos, o invisível dentro de nós—uma dimensão sem lugar, sem tamanho, sem direção, sem propósito. Era um paradoxo entre mente e coração. Durante 10 dias, ele nos guiou com total dedicação, ensinando a quatro ocidentais que haviam viajado até sua casa e, mais tarde, embarcado em uma peregrinação aos locais sagrados tântricos de Sikkim, no norte da Índia.

Percorremos estradas traiçoeiras que seguiam um rio selvagem, sacudindo nossos cérebros e corpos como animais desorientados em um terremoto. Viajando por vales profundos e florestas densas, fizemos paradas em mosteiros históricos, picos elevados e cachoeiras com cavernas onde antigos iogues haviam meditado, incluindo o próprio Padmasambhava. O lendário Monte Kanchenjunga surgia imponente em nossa imaginação, com histórias místicas sobre uma terra secreta oculta. Diziam que aqueles que chegassem a essa terra seriam para sempre alegres, libertos de todo tipo de sofrimento, em um estado eterno de samadhi, jamais retornando à Roda de Yama: samsara.

Os habitantes indígenas de Sikkim, conhecidos como Lepchas, acreditam que o Monte Kanchenjunga seja a morada das divindades. Suas práticas espirituais estão profundamente conectadas à terra, aos rios, montanhas e florestas. O folclore Lepcha fala de Mayel Lyang, uma terra mística e escondida, descrita como a “Terra da Felicidade Eterna”. Acredita-se que esta terra seja o lar original dos Lepchas, criada pelo casal divino Itbu-moo e Tashey-tong, figuras centrais na mitologia Lepcha. Mitos semelhantes, como a lenda tibetana de Shangri-La, também fazem referência a reinos místicos ocultos nos Himalaias.

Nós, os quatro, profundamente tocados, nos sentimos inspirados pelas muitas histórias. Elas alimentaram nossa motivação para encontrar o “Bengali Baba”, como era conhecido, que vivia em Kalimpong com sua consorte, Shodashi Ma. A terra secreta e sagrada era descrita como um lugar real e ao mesmo tempo um estado de ser a ser alcançado dentro de nossa própria psique. Essa dualidade refletia nossa jornada—tanto a peregrinação externa, áspera, quanto o caminho espiritual interno que trilhávamos ao lado do guru, sua consorte radiante e alguns de seus discípulos. Baba-ji falava em enigmas, entre goles de álcool abençoado de sua taça feita de crânio. Suas longas palestras eram pontuadas por risadas espontâneas, louvores a “Ma” e danças repentinas quando tocava seu instrumento de uma única corda, o ektara.


Baba-ji fora, no passado, foi um Aghori sadhu. A tradição Aghori, uma seita mística e ascética do Shaivismo, é conhecida por suas práticas espirituais extremas que desafiam as normas sociais. Fundamentados no não-dualismo (Advaita), os Aghoris não veem distinção entre o puro e o impuro, o sagrado e o profano. Tudo no universo é visto como uma expressão do divino, incluindo o que tradicionalmente é considerado tabu. Eles meditam em terrenos de cremação, usam cinzas humanas em rituais e utilizam crânios como tigelas (kapalas) e ossos de fêmur como trompetes (kangling), simbolizando seu desapego ao mundo material. Essas práticas extremas são realizadas com o objetivo de alcançar a iluminação (moksha) nesta própria vida.

Para aqueles que buscam a pureza, a vida e a morte são a mesma coisa; nas cinzas, encontramos a libertação; na sombra, a luz se desvela. — Uma citação inspirada pelos princípios da filosofia Aghori, sem fonte específica.

Após seguir seu próprio guru no caminho de um Aghori, o percurso de Baba-ji mais tarde se suavizou, e ele adotou o xale nagpa branco e vermelho sobre um colete azul. Os nagpas, associados à escola Nyingma do Budismo Vajrayana tibetano, propagada por Padmasambhava, que transformou o panorama cultural e espiritual dos Himalaias, vivem um estilo de vida não monástico e yogue. Assim como os Aghoris, os nagpas também se dedicam a práticas esotéricas que enfocam a transformação, a meditação e a não-dualidade. No entanto, eles podem manter uma vida familiar e doméstica, integrando a espiritualidade com o cotidiano.

Fiquei hipnotizada pela trajetória, conhecimento e devoção de Baba-ji. Ele fez as lágrimas brotarem dos meus olhos e desafiou meus pensamentos e conceitos. Ele me tirou do fluxo abstrato da devoção com sua música e sua fumaça para a visão nítida da realidade, oferecendo-nos um espectro completo de todas as experiências. Alguns se renderam à sua música, outros à sua fumaça, e outros às suas anotações. Baba-ji nos deu tudo sem pedir nada em troca, a não ser nossa presença. Da mesma forma, Shodashi Ma, em seu silêncio, estava profundamente enraizada em seu amor sincero pelo divino através da prática yogue e de rituais que duravam horas. Sua presença profunda ressoava com um amor imensurável por cada ser e lugar que ela encontrava.



Sentada à minha mesa de volta no Brasil, minhas lembranças dessas experiências parecem um sonho, outra dimensão, outra vida. No entanto, elas não são. Esses praticantes vivem no mesmo mundo que eu, lembrando-me de que meu coração também pode tocar o mesmo transe de amor e lucidez clara que eles personificaram.

Consideramos trazer Baba-ji para o Ocidente, para compartilhar sua preciosa sabedoria e tocar os corações daqueles que anseiam por brincar, dançar e cantar os poemas dos iluminados. Mas não conseguíamos imaginar como Baba-ji, com seus dreadlocks, vestes nagpa e taça feita de crânio, poderia ensinar em um lugar como Nova York. Estaríamos preparados para abstrair o contexto em que vivemos para ver alguém como ele realmente é? Ou ele se tornaria apenas mais uma figura exótica, um sujeito para selfies nas redes sociais? A fama no Ocidente corromperia seu caminho, mesmo que ele não aceitasse pagamento, nem mesmo como uma oferenda nossa?

Cheguei a acreditar que sua terra—sua casa com seu cenário específico e estradas desafiadoras—era parte integrante da geografia sagrada que nos permitia acessar seus ensinamentos; sagrada não porque a terra fosse coberta de ouro, mas porque nossa motivação para encontrar o guru em sua morada abria os invisíveis portões sagrados de Sikkim, a fonte de tantas lendas sagradas. Certos lugares na Terra realmente parecem sustentar aqueles que carregam fogo nos corações, como uma montanha com uma chave que só pode ser aberta pelo fogo que carregamos dentro. Sem esse fogo interior, alguém poderia ficar diante dos portões do céu e nunca ser capaz de entrar. Sob essa perspectiva, Shangri-La pode de fato ser um lugar, mas a chave para ele é o fogo invisível. Os Himalaias estão cheios de “portadores de fogo” por uma razão: a geografia foi feita para os portadores de fogo. O que aconteceria com os portadores de fogo em um ambiente como Nova York?

Refletindo sobre isso, pondero sobre o significado da peregrinação e a importância de ir a certos lugares sagrados. O esforço é central na peregrinação, como demonstrado pelos muitos peregrinos tibetanos que viajam até o Monte Kailash, o monte mais sagrado para budistas e hindus, não andando, mas se prostrando ao longo de uma jornada de meses. O mérito seria o mesmo se eles simplesmente tivessem caminhado ou andado a cavalo? Talvez o fogo que deve ser encontrado antes de alcançar o lugar sagrado precise ser aceso por meio de esforço físico. Como Baba-ji ensinou, os cinco sentidos são os portões secretos para a bem-aventurança eterna.

Seja através da peregrinação, da disciplina yogui, das pujas devocionais ou do trabalho voluntário, envolver o corpo acende o fogo que pode abrir as portas da bem-aventurança. Quando um peregrino alcança o sagrado Monte Kailash após um árduo esforço físico, ou quando um verdadeiro yogue atinge a bem-aventurança após anos de prática persistente de tummo ou kundalini, é o fogo interior que abre os portões. Se Baba-ji fosse a Nova York, o significado da geografia sagrada—um símbolo da sabedoria primordial distante da Terra—se perderia. A natureza remota de tais lugares nos lembra que, antes de qualquer encontro, devemos buscar a chave dentro de nós mesmos. Baba-ji detinha a chave, mas ele só poderia nos mostrar o caminho; não poderia abrir as portas por nós.

De volta para casa, tão longe daquele lugar mágico, minha intenção é manter o fogo vivo—me tornar uma guardiã do fogo, ansiando por "Ma" e resistindo ao desejo de gratificação falsa e ao conforto das distrações mundanas que apagam a chama. Quando o fogo arde, pode ser bem-aventurado ou aterrador, mas não devemos ignorar a dor de um coração que anseia o divino. Meu chamado é a canção à qual devo dançar até alcançar os portões de Shangri-La.

"Pela paixão o mundo somos presos;

pela paixão também somos libertados.

Mas pelos hereges essa prática não é conhecida,

Pois eles passam de existência a existência."

— Do Hevajra Tantra



Tiffani Gyatso, Janeiro 2025

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